24.3.13

XX (Filho e Fera)



  - Ele era tão bonito, sentia-o tão doce dentro de mim, dentro de minhas entranhas. Por que Senhor? Por que me deste um inutilizável? Por que colocaste um orangotango bestializado em minha vida? Mas ele era lindo em meu ventre, eu o via, ouvia sua vozinha sôfrega com frases pausadas. – em frente ao seu espelho dos anos quarenta deixado por sua avó à sua mãe que por sua vez o deixou à essa Matilde que se condenava, arremessava palavras ao ar para algum anjo aparecer e dar o seu amém.
  A cozinha da casa possuía um tom enegrecido pelo tempo, pelas vestes de luto de todas as mulheres que passara por aquela casa pertencente à mesma família há tempos. Tudo escuro, não há mobílias no recinto, apenas panelas pelo chão, panelas vazias. Matilde em um pijama vermelho está sozinha: - Às vezes tenho medo de sua demência. Mas como? O pai dele era perfeito, dava conta de mim e dizem que também tinha mais quatro mulheres pela rua. E esse Juninho que nem é capaz de me dar um netinho ou pelo menos uma menina... mas não podem ser moribundos como ele. Talvez foi a morte de seu pai que o deixou assim ou é castigo, castigo por eu ter engravidado antes de casar; e não me lembro o que aconteceu depois, acho que aquele homem me abandonou, não me lembro de seus olhos, apenas de como essa besta era incrivelmente linda, magnânima em meu corpo, meu último corpo, depois disso troquei de corpo apenas uma vez e minhas pele ficou com algumas manchas. Há um dia em que ele retorne ao meu âmago e, então, voltarei a ser feliz como no dia em que meu pai dançou comigo a valsinha dos quinze anos, mas faz tanto tempo... E vejo que Juninho volta com mais um pombo entre seus dedos, é preciso me esconder logo.
  Existem seres que alguma coisa no universo os ama e ao mesmo tempo não os perdoa, Juninho era um desses – possuía a loucura infernal, bestial ao ponto de bater sua cabeça na parede e agredir transeuntes; ao mesmo tempo angelical, trazendo pombos doentes para cuidar e diariamente dando doce às crianças, que não comiam pois suas mães consideravam maculado um doce vindo das mãos de um louco ou então comiam escondidos. Sentado na escadinha, olhando as formigas andarem em trilhas por suas pernas, Juninho tentava emitir algum som; do basculante da cozinha sua mãe via tudo, e sua voz trêmula se inclinava até o filho: - Meu filho, não vê essas formigas em suas pernas?! Elas podem te machucar. Oh, meu Deus, por que isso? Em que pecados esbarrei para merecer tudo isso? Tenho que pagar por meu pai que malhava os aleijados e os negros? Não pode haver dor pior no mundo, a de ser mãe. Quando estou pela rua, grito à todas as moças que vejo: “Não sejam mãe! Liguem as trompas!”. Acho que também estou ficando louca, às vezes tenho até a sensação de que o tempo está andando para trás... Meu filho, entre e como algo. – Juninho, com o dedo indicador, escreve algum sinal na terra do quintal e entra para a casa; olha serenamente para a mãe, encosta a mãe em sua face e emite algum grunhido, e então vai comer seu mingau.
  Os dois na mesma casa, um não entendendo o outro apesar de suas faces se confundirem – onde tinha um pouco de um ao mesmo tempo faltava algo do outro no mesmo corpo. Matilde olha para o seu indesejado, porém amado filho; e acariciando seu rosto, olhando seus olhos, arremeta as duas almas ali presentes a um oásis que não deveriam se permitir. E com essas palavras, Matilde repintava o destino: - Tenho pena de você, meu filho. Você nunca saberá o que é o amor, ou melhor, eu tenho a obrigação de te mostrar o amor... Sim, agora estou nua em sua frente, me faça feliz novamente, volte para dentro de mim, sejamos animalescos no mesmo corpo. – E numa fornicação consentida, Juninho adentrava novamente o corpo de sua (des)amada mãe – Eu te amo, amarei ainda mais o que mora em mim agora, ainda mais se não for bestializada. Agora suma, fuja! Se espalhe e recorte o mundo em pedaços, não há nada inalcançável, cada sentimento pode respingar por nossas mãos tão humanas, meu filho. – com os olhos arregalados, Juninho se afastava, cada passo o afastava daquela casa, talvez nunca mais voltasse àquela vida, talvez nunca mais voltassem o Juninho e a Matilde de então. – Isso tão longe e bem aqui dentro – decretava Matilde.

2 comentários:

  1. Adoro a forma que vc escreve, desde sempre.
    Uma vez me disseram que eu tenho o dom de transportar os meus leitores para dentro das minhas cenas.. O que diriam então se lessem os teus contos.
    Torço muito por você com uma genuína esperança, pois sei que você irá longe se prosseguir com esses passos.
    Mesmo que um de cada vez...
    E eu estarei ao seu lado para beijar sua boca para comemorar o seu exito.

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  2. Fico muito feliz por vc gostar do que eu escrevo, minha amada... Muito mesmo!
    Obrigado por essas palavras!
    Eu te amoo muito!

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